28 fev 2010: Fechar abrindo

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Este texto está baseado na conversa que tivemos após a volta do Contrafilé da Chapada Diamantina e a partir da leitura do material postado pelo grupo no blog. O reencontro dos integrantes do grupo, daqueles que viajaram com aqueles que ficaram em São Paulo, gerou uma experiência de reflexão e pensamento ao tentarmos traduzir em palavras a experiência vivida. Tradução sempre difícil em relação à vivência, mas que nos colocou frente a frente com o exercício da memória e de suas construções, com a imaginação dos fatos e, sobretudo, nos permitiu olhar a nós mesmos com um certo olhar de estranhamento.

Sem ter a pretensão de sermos fiéis à realidade, esperamos contribuir com a construção do pensamento e das discussões sobre formas de representação e humanização das relações sociais e pessoais.

A conversa
São 19h de uma quinta-feira em São Paulo. Há duas horas a energia acabou em diversos bairros e a cidade está um caos. Rafael espera a todos em sua casa, sem luz. Peetssa chega para a reunião extenuado. Para uma viagem de bicicleta que demoraria 15 minutos, demorou duas horas de carro. Joana e Cibele vêm do Ibirapuera e não conseguem chegar. Rafael e Peetssa acendem velas e tentam estar em silêncio, já que um gerador ligado no bairro faz um zumbido constante, não deixando-os esquecer de que estamos em uma cidade.

A conversa começa com Cibele e Peetssa contando sobre a ruptura das imagens pré-concebidas que tinham em relação às pessoas que colocam fogo na Chapada e como, depois de várias discussões públicas sobre o fogo junto a Brigada de Resgate Ambiental de Lençóis (BRAL) e outros participantes, surgiu a proposta de fazer uma investigação-ação sobre “histórias do fogo” na zona rural de Lençóis.

E o que veio à tona a partir desta experiência? Um momento justamente de reconhecer e de quebrar aquela verdade construída de que “na zona rural se bota fogo em tudo”.

O medo de perguntar sobre o fogo, como se este fosse um tema tabu, fez com que ficassem imaginando que para a realização da investigação-ação, deveriam chegar nas comunidades performaticamente fantasiados, cuspindo fogo, vestidos de alguma metáfora. Mas confessaram que todos estes artifícios imaginários eram reflexo do próprio medo de que este tipo de conversa pudesse parecer ameaçadora para os moradores locais.

No entanto, diferentemente desta imagem construída que tinham, as pessoas da região rural não demonstravam medo ao falar sobre o fogo. Quando os integrantes do Contrafilé, junto à Olívia (BRAL) e Valnei (Avante Lençóis), foram checar com os próprios olhos a situação imaginada, não somente se depararam com uma complexidade enorme, como ficou evidente que talvez o maior trabalho que teriam seria justamente o de desconstruir – em primeiro lugar para si mesmos - todo um imaginário, difundido e cheio de falhas e equívocos.

Essa representação sobre o fogo apareceu muito forte, ao longo do tempo em Lençóis, nos discursos pró-turismo e ambientalismo – que se colocam quase sempre contrários as práticas tradicionais das comunidades da Chapada.

Quando Valnei colocou a importância de olharmos para a geração de seu avô e suas práticas (o garimpeiro, a lavadeira, rezadeira, benzedeira, pai e mãe de santo etc.) sem separá-los da idéia de “proteger a natureza”, integrantes da Brigada de Resgate Ambiental se pronunciaram, dizendo que “o garimpo é incompatível com a preservação ambiental”.

Quando o “grupo inventado” (Contrafilé, Olivia e Valnei) foi para a zona rural em busca de “histórias do fogo”, tinham a idéia de produzir registros subjetivos, que depois poderiam se tornar desenhos, mapas, narrativas ilustradas, parte de um material poético para desconstruir discursos fixos, que separam as pessoas da idéia de natureza.

A primeira pessoa que encontraram, neste caminho de “coleta coletiva de histórias” e “desconstrução de um imaginário pré-concebido”, foi o senhor Messias. Messias tinha muita consciência de como utilizar o fogo e falou sobre seu profundo respeito pela natureza. Contou que sempre utilizava o material orgânico como adubo e que quando sobrava muito material, queimava-o em parcelas muito pequenas. Em uma dessas queimas, levou do IBAMA uma multa de R$500. Seu Messias, porém, disse nunca ter ouvido falar de multas para a fazenda vizinha, que junta o mato seco com um trator e faz queimas enormes.

A comunidade de Pau de Colher é um quilombo?
Em nosso caminho de coleta histórias, estávamos indo rumo ao quilombo do Remanso quando passamos pela comunidade de “Pau de Colher”. Tínhamos nossas suspeitas de que esta comunidade também seria um quilombo, pela sua posição geográfica - fica muito perto da comunidade do Remanso. Mas quando perguntávamos para as pessoas de Lençóis, falavam que não era um quilombo ou que não sabiam.

Sem saber ao certo, mas tendo uma intuição de que sim, em nosso percurso em direção à tal comunidade, já em seu entorno, topamos com uma mangueira gigante! Não só ficamos deslumbrados com a árvore, que teria no mínimo 150 anos, como a encaramos prontamente como uma “testemunha” da história. O fato de que uma das primeiras coisas que homens e mulheres que buscavam sua liberdade faziam quando chegavam no lugar escolhido para criar uma comunidade era plantar um pomar e de que esta é uma árvore de origem africana, fez com que ficasse óbvio que estávamos em um Quilombo! Portanto, o universo de histórias, referências, acontecimentos, existentes por trás das histórias do fogo, se mostrava para nós cada vez mais rico, cada vez mais complexo. Nada fácil de supor a partir de uma visão simplista, distanciada, turística, fechada, imóvel.

Quando chegamos no Remanso, Churi, filho do fundador do quilombo, nos perguntou: “Vocês estão vindo de Pau de Colher?” E, nos mostrando fotografias antigas, penduradas nas paredes, nos dizia: “Essa aí é de lá, esse aí também...” Aí, ficamos sabendo que as comunidades tinham laços de parentesco muito fortes.

Ao longo deste percurso, fomos nos dando conta do quanto o tempo todo construímos formas de representação, de como formamos um imaginário do “outro”, deixando as relações padronizadas e estancadas – e, o que é pior, tomamos atitudes e agimos em função dessas representações.

Por exemplo, para nós, habitantes de um grande centro urbano como São Paulo, tanto Lençóis quanto as comunidades da Chapada são rurais. Já para os habitantes de Lençóis, existe uma coisa separada deles que é o rural. E, no interior desta mesma construção está a identidade “daqueles que colocam fogo”. Portanto, quando temos, por momentos, a oportunidade de olhar realmente para os entornos dos quais fazemos parte, seja temporária ou permanentemente, seja um entorno próximo ou distante, quando realmente olhamos querendo ver, encontramos pessoas, histórias, subjetividades e identidades que não são, de forma alguma, reduzíveis às representações.

O que aprendemos?
Por um lado, aprendemos que não precisamos de um monte de coisas para expor as idéias: na construção das imagens, em sua exposição, na divulgação da informação.

Outra coisa muito importante foi o processo de reconhecermos para onde estávamos indo, nosso sentido, no tempo próprio do lugar. A gente se dedicou um mês inteiro ao projeto, que foi o tempo mínimo para podermos, antes de mais nada, desconstruí-lo. E isso foi indispensável para que pudéssemos criar relações verdadeiras. Porque se chegássemos com um formato pronto a ser executado em uma semana, as formas certamente dominariam as relações, impondo a criação de imagens externas aos acontecimentos.

E tão logo se iniciou o processo, o próprio lugar já nos mostrou que poderíamos estar correndo este risco: já montada nossa “casa exposição” - com todos os nossos trabalhos e de outros grupos de São Paulo -, preparados e ansiosos para o nosso primeiro encontro com integrantes do Movimento Avante Lençóis... ninguém apareceu!

Diante desta incógnita, deste sinal, decidimos subir o morro em busca das pessoas. As encontramos muito cansadas e um pouco desmobilizadas devido a toda uma história de trabalho e militância, não muito diferente do que se vive em São Paulo e em outros lugares do país e do mundo: após uma década e meia de muita criatividade social, todos se perguntam “pelo que vem agora”.

Entendemos naquele momento que essas sensações tinham que virar um conteúdo potente a ser pensado nos nossos encontros, que o cansaço e a “tristeza política” tinham que passar a ser um foco de nossa produção coletiva.

O “projeto” tinha, portanto, que ser construído a partir de dentro, da intimidade, e entendendo quais os desejos comuns que aí estavam presentes. Se criou então um outro espaço, um “terceiro grupo”, que não era uma mera soma de Contrafilé, Avante e BRAL, mas uma conexão entre desejos, pensamentos, histórias, origens e todos os possíveis que daí poderiam e de fato emergiram.

Marcamos um outro encontro, algumas pessoas do Avante vieram e pudemos ter uma conversa muito boa. Ainda nos conhecendo, percebemos o momento de cada um e de cada grupo e também como é difícil tornar públicas as angústias. Mas, por outro lado, o quanto compartilhá-las pode ser um processo de reconquista de saúde política e criativa. Foi quando coletivamente pensamos em fazer, todos juntos, um retiro criativo.

No retiro, conhecendo diferentes comunidades e conhecendo melhor as pessoas do Avante e da BRAL, fomos também nos reconhecendo uns nos outros. Foi nesse “tempo perdido” do café da manhã, de tomar banho de rio, tempo que na nossa visão urbana não encaixaria em um “projeto” e muito menos em um processo de trabalho, que as relações se estabeleceram realmente.

Conseguimos ver de uma forma muito mais concreta como na nossa realidade de cidade estamos distanciados dos processos naturais de construção de vínculos e o quanto são estes os processos que, para nós, interessam como matriz para a produção de pensamento, política e arte.

A Clareira
Quando uma árvore velha cai no mato e se abre um novo espaço de fertilidade, a luz consegue atingir um espaço até então oculto. Na sua queda, são arrastadas várias outras plantas que de alguma forma estavam crescendo à sombra da velha árvore.

Essa imagem apareceu no final da nossa conversa porque o encontro na Chapada com parceiros nos habilitou a pensar nossas dinâmicas e de alguma forma a nos (re)estabelecermos como grupo.

Ao desconstruir imagens estabelecidas como a imagem “daqueles que colocam fogo na Chapada”, ou do próprio entendimento do que é um “projeto”, inevitavelmente tivemos que olhar para nós mesmos, como pessoas e como coletivo.

Mas esta não é uma tentativa desesperada por nos vermos fora dos acontecimentos, como se cada um de nós não estivesse também imerso nas exigências de seu próprio cotidiano; pelo contrário, é antes de tudo vontade de entendermos, por dentro mesmo das estruturas, como uma mata nova se levanta na clareira, a partir de nutrientes providos pela árvore antiga.

É disso que se trata: de juntos abrirmos clareiras nas quais o estabelecido apenas como forma ou representação seja removido pela experiência real.

Contrafilé na Chapada

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